Ainda assim, a inveja costuma ser colocada junto com outros sentimentos de qualidade discutível, como o ciúme, a raiva e o medo, na vala comum dos "sentimentos destrutivos". Aqueles pequenos demônios interiores que nos acompanham pela vida sugando parte de nossa vitalidade, paralisando movimentos e dificultando as reações justas. Sofremos, por causa deles, uma espécie de "amarelão" emocional, que nos enfraquece e nos torna tristes figuras. Verdadeiros Jecas Tatus psicológicos.
Ser ou estar
Aliás, quando Monteiro Lobato criou o personagem Jeca Tatu, o fraco e indolente caipira, cuidou de dizer que "o Jeca não é doente, ele apenas está doente". Usou essa maravilhosa propriedade da língua portuguesa que nos permite separar um estado permanente de outro transitório.
Também podemos aplicar esse recurso a inveja, pois há uma diferença entre estar com inveja e ser invejoso. Quem está poderá deixar de estar, mas quem é provavelmente o será para sempre. É seu costume. Quem declara que está com inveja o faz como quem conta que está com cólicas. É algo que vai passar. Já o invejoso reconhecido nada precisa declarar - aliás, ele nunca tem nada a declarar. "Inveja, eu? Deus me livre" e bate na madeira. O invejoso precisa negar sua condição, pois a inveja se evapora quando exposta ao ar. É como o éter. Quando declaramos abertamente que estamos com inveja de alguém, na verdade, declaramos nossa admiração por ele. O invejoso de verdade jamais faria isso. Aceitar admiração significa, para o invejoso, aceitar sua própria inferioridade. São raros os invejosos assumidos, entretanto há alguns exemplos.
Jean-François era sobrinho de um grande compositor, e tudo o que ele mais queria era seguir os passos do tio, de quem se julgava herdeiro do dom e da fama. Mas não foi bem isso que ocorreu, pois o jovem nunca revelou nenhum talento para a música e, como viria a ser demonstrado ao longo de sua vida, para coisa alguma. Indisciplinado e inconstante, tentou a carreira militar, pensou que poderia ser padre, arriscou-se na música, mas acomodou-se na boêmia. Acabou por notabilizar-se por uma postura cínica: a arte de viver sem preocupação moral. E, para quem quisesse ouvir, dizia sem rodeios que invejava, sim, a celebridade de seu tio Rameau.
Tal indivíduo é o personagem central do romance O Sobrinho de Rameau, de Denis Diderot, o filosofo francês que por mais de 20 anos, entre 1750 e 1772, dedicou-se a compilar dados para redigir a Enciclopédia, um conjunto de volumes que resumiria todo o conhecimento da época. Diderot foi, por isso, alvo de críticas dos que consideravam seu trabalho algo menor e que o acusavam de ser um mero compilador, e não escritor e filósofo, como ele se apresentava. Findo o trabalho enciclopédico, Diderot escreveu alguns romances, sendo O Sobrinho de Rameau dedicado a discorrer sobre o sentimento da inveja e a apontá-lo na direção de seus críticos. Jean-François é, provavelmente, o único personagem da literatura que assume sua condição de invejoso e se orgulha dela.
Não se encontra um equivalente de Jean-François no mundo real com freqüência, pois a inveja não costuma ser um sentimento candidamente exposto. Quem o tem o esconde, quando não o nega, até para si mesmo. É muito mais simples que alguém admita seu ódio, sua repulsa, seu medo e até seus ciúmes, mas não sua inveja, pois quem a assume confessa sua inferioridade. E o problema é que sofre com isso.
Outro francês, Jean de La Bruyère, contemporâneo de Diderot, lembra que a inveja volta-se contra quem a sente, e não contra quem a provocou. Disse ele: "Temos pelos nobres e pelas pessoas de destaque um ciúme estéril, ou um ódio impotente que não nos vinga de seu esplendor e elevação e só faz acrescentar à nossa própria miséria o peso insuportável da felicidade alheia"